quinta-feira, 16 de junho de 2011

Um Conto da Religião





São Paulo, segunda-feira, cinco horas da madrugada, primeira chamada da equipe de resgate. “Bom dia sargento. Lá vamos nós. Ontem o culto na minha igreja foi uma benção.” O sargento fechou a porta da viatura e olhou a prancheta.  “Positivo novato. A chamada é na rua dos Protestantes com a rua da Vitória. Deve ser um nóia que passou mal. Na minha igreja o culto foi normal, só acabou muito tarde.  Já estou iniciando a semana cansado.”

“Some daqui! Mais tu é uma vergonha memo.” A primeira pancada foi na cabeça, na altura do supercílio, um talho surgiu e o sangue jorrou. Ronaldo cambaleou e apoiou-se na parede, tatuou de vermelho, a palma e os cinco dedos, manchando todo o plano branco da lateral do prédio da igreja. “Não pai. Pelo amor de Deus. Eu só estava fazendo um trabalho da escola com meus colegas.” Com a acha de lenha vieram novos golpes. “Levanta seu desgraçado miserávi. Pra fazer coisa errada tu tem força, pra apanhar não, né.” Um corpo no chão e pastor José deu-lhe as costas balançando um quarto todo farpado de jacatirão, foi até os fundos onde é a casa pastoral e arremessou-o no monte de lenha ao lado do fogão. “Ele ta acabando com meu ministéro. Meus filho tem que se exemplo da igreja. Sangue de Jesus tem poder! Já expulsei esse demônho, mas não adianta. Vai orar, pedi perdão pra Deus. Por desobedece a seu pai que é também o seu pasto. Seu sodomita safado.”

Naquele mesmo dia Ronaldo foi embora, pegou carona e depois de umas duas horas e meia, chegou a São Paulo. O caminhoneiro só o levou em troca de favores sexuais. Foi oferecido pelo radio amador PX do borracheiro abeira da BR. Manéborracha ganha um dinheiro extra, como cafetão e pedófilo. Coisa comum 
nas estradas por ai.

“O que tu vai faze na capital da fumaça, guri?” Ronaldo olhou as curvas da serra que ia passando pelo retrovisor, depois de um breve silencio, respondeu: “Não sei. É que não agüento mais o vale da miséria”. Mas foi em são Paulo que ele passou muita fome, conheceu a cracolândia e crack. Dormiu sempre nas ruas.  Prostituiu-se a troco das drogas. Como o prodigo, lembrou-se de onde era. Grande talento musical tocava violão como poucos. Aos oito anos conduzia o louvor. Todos o admiravam. “Esse menino é uma bençã”. Dizia irmão Manoel, o presbítero e braço direito do pai. Um belo dia, pastor José e sua esposa, entraram em seu fusca e disse aos meninos: “Vo cuidar da obra de Deus. Mais tarde o irmão Manoel sai do serviço vem fica com vocêis, até eu chega. Disse pra ele não si incomoda, mais ele é muito bonzinho, faiz questão de cuida de vocêis. Vo faze umas visita nos sítio. A irmã Doralice ta doente e famílha do Tião tem um mês que não vem a igreja. Se eu ficar sabendo que vocêis aprontaro e não obedecerem o irmão Manoel, vão si vê como minha cinta quando eu volta a noite”.  Sempre que o pai saia as crianças conheciam a paz. O pai voltava, voltava o pânico. Só que nesse dia o pânico chegou também com o presbítero Manoel. “O mundo deveria ser só de crianças, não deveriam existir os adultos”. Disse Ronaldo naquele dia a seus quatro irmãos, dormiram chorando baixinho, todos doloridos.

Zumbi que se rasteja, um espectro que se translada. Foi assim por muito tempo, uns dois anos. Nas cinzentas e fedidas ruas do centro da maior cidade do país. A madame passa e nem olha. Debaixo dos papelões, dentes podres e tuberculose avançada, o cachimbo da morte sempre é servido.

Todos os outros irmãos cresceram e foram embora da casa do pai, era impossível viver lá. Seis meses depois que o ultimo fugiu, o pastor presidente do campo sacou o pastor José da igreja que dirigia há quinze anos e disse que seus serviços não serão mais necessários à instituição. Agora está velho, não há espaço no mercado de trabalho, principalmente nessa região, nunca pagou a previdência, não há onde morar. “Meu Deus! Meu ministéro acabo e meus filho nem tão aqui para vê. Onde andarão us meu meninos”. Fez seu culto de despedida no domingo, na segunda feira levantou cedinho para arrumar a mudança. Vai morar em um casebre na área rural, cedido por caridade por um fiel de sua igreja. Foi em Miracatu e região que o pastor José despejou os melhores anos de sua vida, sem perceber despejou também a vida de sua família. Terá que sair dos fundos da igreja que ele próprio construiu. Um pastor mais jovem tomará posse em seu lugar, dizem que tem cinco filhos pequenos. “Olha! Os caderno de escola do meu filho mais velho. Não vou pode leva, vo separar pra jogar fora. Onde Ronaldo andará? Que saudade... Porque era afeminado? Tão talentoso. Que isso! Parece uma carta, toda manchada, parece que foi de sangue!”

Na capital, o dia ainda amanhece, uma van vermelha para e o bombeiro examinam um corpo sem vida. “Sargento, está morto, tem aproximadamente uns vinte anos, morreu essa noite, ta muito frio.” Após por as luvas o sargento levanta o cobertor imundo e confere, fez isso, pois seu parceiro não tinha muita experiência, primeiros meses na profissão. “É um saco de osso, se tu me falasses que ele tem quarenta e morreu há dois meses, eu acreditaria, e essas cicatrizes na testa, são antiga. Chamem o IML.”

A uns cento e cinquenta quilômetros dali, o pastor lê:

Deus porque aconteceu isso comigo, naquela época eu era só uma criança de oito anos. O presbítero Manuel é nosso irmão da igreja, e faz isso com a gente. Machucou-nos, que nojo, segurei por que me obrigou, passou na minha boca. Dizia que ia nos matar se contássemos a alguém. Por quê? Onde estava meu pai? Fazendo visita e orando por doentes. E nós? Onde você estava Deus? Como poderia contar ao meu pai que foi assim que começou. Jamais iria acreditar. Nunca nos ouviu. Depois vieram os outros abusos. Hoje sou assim mesmo, ele jamais vai me entender. Vacilei, não poderia ter me pegado no quarto com os moleques do colégio. Sou um pecador perdido como papai sempre fala, é isso, tenho que ir embora.
Ronaldo

“Sargento, é nisso que da, não criar os filhos na igreja. Se esse moço fosse um filho de crente, não acabaria nessa situação.” Ambos levantaram-se, soltaram o cobertor, olharam os curiosos, que faziam um circulo em volta deles. Eram dezenas, um bando de gente suja, raquítica, olhos fundos, rostos ossudos e pupilas dilatadas.  “Tenho vontade de fazer algo por essa gente, trazer a igreja pra cá e arrumar clinicas de tratamento para viciados em drogas. Sei lá, fazer alguma coisa. São seres humanos!” Enquanto pediam licença e abriam passagem, o jovem soldado comentou: “Não sargento. O mundo jaz no maligno. A vinda de Jesus está próxima. É por isso que já ta tudo se acabando. Minha igreja não trago pra cá de jeito nenhum. Não podemos perder tempo com isso. Temos que nos preparar pra ir pro céu”. Os policiais militares chegaram para guardar o corpo até o IML vir buscá-lo e assim liberaram os socorristas.

Os bombeiros retornaram à base a espera de um novo chamado. “O que será do garoto, sargento? Não tinha um documento, não tem como avisar a família”. A cancela do portão do batalhão vai subindo. “Estacione a viatura ali, perto da escada magirus. Quando é assim é enterrado como indigente”.

Jessé (Este texto é dedicado a todas as pessoas abusadas atrás das cortinas da religiosidade)



Um comentário:

Rafaela disse...

Nossa... Que texto forte! Parabéns pelo conto. Confesso estar angustiada... Poucos cristãos têm tamanha ousadia e muitos de nós prefere tapar os olhos diante de uma realidade como essa. É triste. Realmente triste.
Espero que se blog seja uma ferramenta pra impactar vidas, despertar, enfim, trazer de alguma forma >mudança< ...
Abraços
Rafaela